Causa Mortis

Mais do que as várias manifestações do câncer, os problemas cardíacos e a aids, se o arrependimento matasse, esta seria a maior causa de mortes naturais em todo mundo. Mal súbito, o arrependimento se instala no coração, corrói as vísceras, atinge a alma. Seu castigo é pior do que a morte, já que condena a vítima a carregá-lo enquanto durar os seus efeitos, que podem ser eternos.

Ruína da humanidade, a culpa seria a glória dos analistas, cientistas, médicos, e da indústria farmacêutica. Os noticiários anunciariam diariamente óbitos de arrependidos ilustres e as famílias chorariam suas perdas sem dar entrevistas ou declarações, pois quem pode informar o arrependimento alheio? “Saiba como se livrar do arrependimento”, “Não se arrependa e prolongue a vida”, “Mulher mais velha do mundo declara: ‘Fiz e nunca me arrependi’”; seriam as manchetes das publicações mais respeitadas.

No início deste ano, eu cismei de encomendar um móvel à véspera do meu aniversário. Procurei o marceneiro da família, seu Dimas, marquei e fui buscá-lo em Olinda. Tínhamos uma tarde para medir, desenhar, comprar a madeira e executar a idéia. Contudo, depois de visitar várias madeireiras, calcular e recalcular o orçamento, entendi que não daria tempo. Foi um dia atribulado, estressante e, sobretudo, frustrante. Deixei seu Dimas na parada de ônibus e segui, apressada, para encomendar o bolo.

Dias depois, passado o aniversário, lembrei que não dei o dinheiro da passagem para o solícito marceneiro, que perdeu seu tempo e ainda custeou a volta pra casa. Devolvi as ferramentas e pedi desculpas, mas, porque não tinha na hora ou porque nem pensei nisso, não ressarci seu bolso vazio.

Alguns meses se passaram, eu soube que aquele nosso encontro tinha sido o último: ele chegou a falecer. Desde então, a culpa instalou-se em mim e não há um dia sequer em que eu amanheça e me deite sem remoer a lembrança.

Não é meu arrependimento mais recente, mas o mais publicável. E se arrependimento matasse, nesta manhã seu Dimas me receberia no céu, onde, com dois reais em punho, eu me desculparia pessoalmente.